quarta-feira, 13 de agosto de 2008

A impragmatizabilidade* da Literatura

Semana passada eu encontrei uma amiga que acabou de se formar no curso de Letras. Como não nos víamos desde a época em que ela ainda estava produzindo seu trabalho de conclusão (sobre uma obra literária), perguntei-lhe como havia sido a defesa da monografia. Sua nota foi 9, e a justificativa para a perda de um ponto foi a ilação à qual a banca examinadora chegou: o assunto trabalhado não possuía relevância científica.

Bom, eu já li trabalhos acadêmicos que estudavam a importância da substância X para a complementação do valor nutricional na alimentação de pessoas anêmicas de baixa renda, já li sobre a relevância da técnica terapêutica Y no tratamento de pessoas com tendências suicidas e até já ouvi falar de uma certa área da lingüística que estuda o desenvolvimento cognitivo.
Mas determinar a relevância científica do estudo de uma obra de arte é realmente complicado.

Primeiro é necessário discernir o que se entende por relevância científica nesse caso. São estudos cujos resultados oferecerão mudanças benéficas à sociedade? Parece-me que a relevância científica no estudo de uma obra literária diz respeito à importância que as questões suscitadas no trabalho terão para a elaboração de pesquisas posteriores. E os objetivos das pesquisas posteriores devem contemplar o quê? A Literatura não tem como objetivo outra coisa além de si mesma, senão se torna didatismo, panfleto, cartilha. Senão não é Literatura. Sim, ela modifica o percurso de uma sociedade (e/ou descreve essa modificação), e é possível – e, mais do que isso, necessário – verificar que tal manifestação é muito responsável pelo exercício da reflexão e do pensamento crítico, do desenvolvimento da autonomia intelectual e da humanização do leitor (papinho mais LDB), mas as vias pelas quais esse “progresso intelectual” ocorre não se descrevem em métodos científicos e tampouco podem ser comprovadas com elementos concretos.

A arte, desde os primórdios da civilização, é o símbolo de status de uma classe privilegiada, sendo sempre dissociada do “trabalho”. Trabalhar faz parte do sofrimento cotidiano, implica esforço, cobranças, resultados. Já a arte é objeto de prazer, de fruição, e a relevância presente em uma obra de arte para mudanças à sociedade ocorre de modo indireto, a partir do momento em que sua qualidade artística oferece “acesso a um conhecimento que objetivamente não se pode mensurar” (papinho mais PCN). O texto literário é essencialmente subjetivo, e não se pode comprovar, por A+B, o que a obra Z provocará na sociedade W. Até porque não existem A nem B que possam ser tão seguramente enumerados em uma manifestação cuja característica principal é a multinterpretação (e eis mais uma composição morfológica neologista). Assim, a relevância científica de um estudo que preza por um resultado preciso e que se utiliza de elementos exatos para a mudança direta de uma determinada realidade não pode ser a mesma relevância científica do estudo de uma obra de arte. A literatura não é passível do utilitarismo e o usufruto que ela nos oferece transcende às barreiras de metodologia, objetivos e cronogramas.

Um ponto para a minha amiga!

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* O Dicionário Houaiss de Língua Portuguesa não reconhece a palavra, mas foram utilizados os conhecimentos adquiridos através de aulas de Morfologia para justificar aquilo que pode ser chamado de raciocínio lingüístico e, mesmo com toda a formação acadêmica obtida para se chegar a tamanha construção morfológica, tal raciocínio é aplicado com mais freqüência e com a mesma perspicácia por bebês em processo de aquisição lingüística e por pessoas não-escolarizadas sem nenhum conhecimento teórico acerca do tema. Enfim. Temos como raiz o verbo “pragmatizar”, que significa "tornar pragmático", mais o prefixo “im-”, que significa negação, e o sufixo “-bilidade”, cuja função é dar o caráter de “passível de” à palavra. Assim, a palavra “impragmatizabilidade” pode possuir, como acepção, “aquilo que não é passível de se tornar pragmático”.