sábado, 6 de novembro de 2010

Dois pesos, duas medidas

Amanhã completará uma semana da eleição de Dilma Rousseff à presidência do Brasil e, com isso, uma semana de discussões dos mais diversos cunhos e também das manifestações mais baixas que eu já vi ao longo de toda a minha vida. Se a internet leva os maiores méritos por democratizar a comunicação, encurtar distâncias, propagar mensagens construtivas em tempo real, é ela também a responsável por propagar uma quantidade absurda em tempo recorde de besteiras imensuráveis. Como tudo tem um lado, é o preço que se paga, e cabe a nós a sujeição a tudo isso e a capacidade crítica de discernir o que deve ser absorvido positivamente ou não.

Um exemplo recente das agruras da internet foi o caso da estudante de Direito Mayara Petruso, cuja história todo mundo conhece, ao menos por alto: revoltada com a vitória da candidata petista à presidência com uma porcentagem significativa nos estados do Norte e do Nordeste, a menina publicou em seu twitter uma mensagem clamando pelo assassinato por afogamento dos nordestinos; a OAB entrou com uma ação contra ela, e agora a menina de alta instrução intelectual da elite brasileira responde por crime de racismo e por incitação pública de prática de homicídio. Após sua mensagem haver repercutido no país e no mundo, ela apagou o twitter, como se dissesse: “esqueçam tudo o que escrevi”. Um site contra xenofobia denuncia casos semelhantes Brasil afora e ainda há quem reclame que ela tenha razão.

Após a vitória de Dilma Rousseff, ainda que esteja matematicamente comprovado que sua eleição seria inevitável mesmo nos estados do Sudeste, do Centro-oeste e do Sul, os protestos de pessoas autoproclamadas superiores aumentaram: dizem-se revoltadas por terem de viver durante mais quatro anos sob a gestão de um governo escolhido sobretudo por analfabetos, miseráveis, por pessoas facilmente manipuláveis por programas assistencialistas e de marketing barato.

Alguns são mais polidos, realmente. Não incitam assassinato, nem por afogamento nem por câmara a gás (essa sugestão ocorreu também!), mas sugerem a separação do país ao meio ou ao menos se dizem indignadíssimos com o fato de serem de tamanha qualificação, contribuintes honestos, pagantes de altos impostos, e terem de sustentar meio país, famigerado e vagabundo, que, ao invés de trabalhar arduamente, coloca um governo populista no poder e impede sua aceleração econômica.

A discussão nos últimos dias centralizou-se basicamente neste ponto: “assistencialismo”. Insatisfeitos com os programas de inclusão social, que alavancaram milhares de famílias a um poder aquisitivo maior, oportunizando acesso às universidades privadas, a internet rápida, a celulares modernos, a crédito financeiro facilitado para abertura de microempresas ou investimentos na zona rural, a classe média viu-se em dado momento sentando-se ao lado da manicure no voo de avião e recebendo na sala de jantar o rebento da empregada paraíba para discutir o trabalho da faculdade junto com seu filho: uma ameaça à sua dignidade e à sua pureza. É claro que para uma pessoa razoavelmente distinta tais argumentos não podem ser claramente enunciados, e aí entra o discurso do “sou a favor de um governo que ensine a pescar e não dê o peixe.” Assim cada um fica no seu quadrado, já diria o filósofo, e, de quebra, o rebento da paraíba aprende a pescar e continua lhe servindo o peixe na sala de jantar. Olha que genial.

Dia desses um formador de opinião questionou em um veículo de comunicação: “Aqui no Brasil é assim, a pessoa bota um filho no mundo, cruza os braços e fala, ‘Agora toma conta, governo!’”.

Pois é. De fato existem pessoas cuja mentalidade é tão miserável quanto a sua condição social, e o histórico é longo. No início do século XX, na época de Oswaldo Cruz, em que se buscava erradicar a peste bubônica no Brasil, pagava-se à população uma certa quantia por cada quilo de rato morto entregue aos funcionários de uma instituição que hoje corresponderia ao Ministério da Saúde. O resultado, imaginem: começaram a criar ratos em casa para entregar mais ratos mortos aos funcionários e assim faturarem mais dinheiro. Como um atavismo social, até hoje há quem invista em filhos para garantir o Bolsa Família, em uma péssima associação de ratos a pessoas. Uma realidade verdadeiramente lamentável.

O argumento de que se trata de ignorância puramente advinda da falta de instrução acadêmica, de características étnicas de determinado grupo regional (?), de uma certa tendência a ser comprado por uma Bolsa-Esmola da vida, por comprovações práticas, não rola. Independentemente da classe social, do grau de instrução, da região do país, o fato é que, cá entre nós, vivemos nosso dia a dia contando com a oportunidade de mamar na teta do governo – inclusive os próprios contribuintes honestos e pagantes de altos impostos que supostamente sustentam metade de um país vagabundo e miserável, na verdade, assistencializam-se a si próprios e são também protagonistas da própria miséria e vagabundagem a que tanto reclamam sustentar.

Vou citar apenas alguns exemplos que me vêm à mente agora: deixe-me contar na mão quantas pessoas conheço que pediram demissão e fizeram acordo pra ganhar seguro-desemprego e inclusive postergaram a procura por um novo emprego pra ficar um tempinho ganhando dinheiro sem fazer nada. Hmm, deixa eu contar nos pés também. Algo absolutamente corriqueiro e ingênuo. Pois é, esse dinheiro vem do governo; é do contribuinte. Você é instruído, vai viver desse dinheiro que serve de assistência, mas porque você não é um miserável, não é um analfabeto nem um nordestino, você não é vagabundo. É essa a lógica? Quando eu era bolsista do CNPq, conhecia uma porção de pessoas que tinham emprego, mas não assinavam carteira pra não comprovar vínculo empregatício e assim ganhar a bolsa no centro de pesquisa federal, que ultrapassava os MIL REAIS por mês e era direcionado para que a pessoa se dedicasse integralmente ao projeto de pesquisa acadêmico. Esse dinheiro era uma assistência ao pesquisador. Mas o cara é pós-graduado: viver às custas do governo de forma antiética pode? Porque soa bonito: é renda-extra pro mestrando, pro doutorando viajar pra Europa e trocar de carro com o dinheiro do contribuinte quando na verdade deveria ser a sua única forma de renda enquanto ele se dedicaria à vida acadêmica. Mas os R$200 que complementam a renda pro vagabundo comer doem nos nossos bolsos e levam os cofres públicos à falência suprema. Como sugeriu Maria Rita Kehl no artigo que valeu a sua demissão mês passado naquele democrático jornal paulista, temos para cada "dois pesos..." duas medidas.

Os altos índices de escolaridade em outros estados que elegeram Serra ou candidatos de demais partidos não significam absolutamente nada. Vivemos em um período de despartidarização, de contradições e ceticismos ideológicos quase plenos: sabemos disso. O estado que elegeu Serra é o mesmo estado que elegeu Tarso Genro e o mesmo estado que elege Mickey e Pateta. O estado que elegeu Dilma é mesmo o estado que elegeu Garotinho e o mesmo estado que elegeu Marcelo Freixo. E aí?

Em contrapartida, esses mesmos programas assistencialistas que sustentam grandes hipócritas e parasitas sociais são os mesmos que fomentam pesquisas de qualidade e contribuem para o crescimento do universo acadêmico no país; são os mesmos que ajudam a pagar as contas daqueles que por uma razão ou por outra se encontram desempregados à procura de uma nova oportunidade; são os mesmos que oportunizam aqueles a entrar em uma universidade particular com uma bolsa de desconto integral, por não terem tido condições de investir alto na educação básica e concorrer de forma leal com os que dominam no ensino superior público (foi o meu caso); são os mesmos que disponibilizam um dinheiro mínimo para que uma pessoa cruze os braços e se negue a trabalhar a uma jornada desumana por uma renda miserável e, com esse dinheiro, possa exigir seus direitos sabendo que não morrerá de inanição.

A miséria espiritual é maior do que a social, e nem posso dizer “hoje em dia”. Qual é a vagabundagem que nós sustentamos?

Termino este texto parafraseando a infeliz Mayara Petruso e pedindo-lhes um grande favor: matemos afogados a nossa hipocrisia.

terça-feira, 16 de março de 2010

O BBB e os agentes emburrecedores

O Big Brother Brasil chega à sua décima edição, apresentando basicamente a mesma proposta de entretenimento – para o público e para os participantes –, e, concomitantemente, a "oposição", composta por intelectuais, letrados e hipercríticos, chega igualmente à décima edição, apresentando também os mesmos comentários a respeito do programa.

Como dois e dois são quatro, sei que o teste vale a pena. Suscite uma discussão, seja em uma conversa entre autotintitulados letrados, tipo a mesa de um bar composta por estudantes de ciências humanas quaisquer – de preferência de uma instituição federal, porque estes em sua maioria atendem perfeitamente ao estereótipo de estudante-de-esquerda-crítico-intelectual-antissistema-e-anticultura-de-massa – ou em algum site de jornal brasileiro, por exemplo. É acertado o surgimento de uma profusão de injúrias à Rede Globo, à televisão brasileira, à televisão aberta, à burrice e à falta de cultura do povo brasileiro... esses dois últimos, alvos de críticas que muitas vezes vêm disfarçadas por um eufemismo que confere poderes fascistas sobrenaturais às instituições televisivas e exime de todo e qualquer telespectador brasileiro o direito – arduamente conquistado, diga-se de passagem – da escolha e da autocensura deliberada.

Os motivos são sempre os mesmos: a população deveria ter direito a programas culturais e de conteúdo na televisão aberta; o Big Brother não passa de um programa com descerebrados cujos únicos atributos são peitos e bundas etc etc etc.

O que algumas pessoas esquecem, porém, é que há, sim, programas "culturais" (e, considerando-se "cultura" o conjunto de manifestações que caracterizam um grupo social, pergunto-me se o BBB, como afirmou Pedro Bial, não seria de tanta cultura quanto Guimarães Rosa, sendo este apenas canonizado pelo tempo e pela academia...) e de "conteúdo" na tevê aberta, que discorrem sobre cinema, política, educação. E que a Rede Globo não possui poderes paranormais de coagir o público: vide o fracasso de audiência de Capitu, microssérie com texto de Machado de Assis, com uma bela e incomum estética e com trilha sonora alternativa, exibida no mesmo horário em que o BBB se passa atualmente.

O grande problema não é assistir a programas insapientes, mas sim não possuir capacidade crítica pra discernir aquilo que deve daquilo que não deve ser deglutido. A novela das oito adquiriu o status de folhetim contemporâneo, que detém a atenção e a fidelidade de pessoas que buscam em uma trama elementos para que realizem a clássica catarse. O Big Brother Brasil tornou-se um laboratório humano, no qual pessoas – descerebradas em sua maioria, sim – em convivência extrema criam suas próprias tramas e definem uma linha de identificação com aqueles do outro lado. É ou não é uma catarse da massa?

Além do mais, esta última edição acabou por perder o caráter de entretenimento e tornou-se pauta para uma discussão de cunho social: por que a identificação com um monte de músculos que não domina a própria língua, é misógino, homofóbico e ignorante? A quem se almeja torcendo por ele?

Sim, eu assisto e voto. E, sinceramente, entre o céu e a terra existem mais agentes emburrecedores do que podem supor a nossas vãs filosofias...