domingo, 9 de setembro de 2012

A crackuda do 474

Foi incorporado há alguns anos na língua portuguesa um novo vocábulo, a palavra crackudo, um neologismo que atende perfeitamente às necessidades de se classificar o usuário do crack. A composição é simples: a palavra crack, que corresponde aos cristais de cocaína, e o sufixo -udo, que em geral atribui ao seu radical o sentido de abundância, excesso, enfim, de características aumentadas. Pois bem, daí temos palavras como bocudo, cabeçudo, barbudo e, agora, o crackudo para aquele que está cheio do crack

Quem conhece alguma região onde existe uma cracolândia infelizmente já se deparou com as condições subumanas às quais são impostas todas as pessoas que ali vivem, não apenas os crackudos, que aliás, também vivem muito mal. De uns tempos pra cá, logicamente, como nossa sociedade não é boba nem nada, a palavra passou a se referir não apenas ao grupo de usuários da droga mas a toda corja social que negamos existir. O catador de latinhas que trabalha o dia inteiro sob o sol e à noite entra fedorento pelos fundos do ônibus? Crackudo. Um pretinho que foi assaltado e pede dinheiro pra voltar pra casa? Crackudo. O mendigo acometido por alguma doença maldita e que anda decrépito pelas ruas? Crackudo. Uma favelada sem dentes que bebeu demais e fez barraco na rua? Crackuda. Se estiver miserável, se se encontrar deplorável, este país já lhe dá um nome. E temos mais crackudos do que crackudos pelo Brasil. 

E foi em uma manhã comum, quando eu estava esperando o ônibus para ir trabalhar, que chegou no ponto um casal de mendigos tentando embarcar num ônibus que fosse ao Jacaré. Da combinação mendigos+Jacaré vocês já sabem em qual categoria eles se enquadram. Não obstante não sabermos seus hábitos, o fato é que, para todo o Rio de Janeiro, estavam à minha frente dois crackudos. Conversavam baixo, mas gesticulavam bastante, como se estivessem discutindo a relação. Quando chegou o meu ônibus, fiz o sinal, e eles aproveitaram para entrar também. 

Os dois estavam lá no fundo e, a certa altura, começaram a gritar. Brigar feio. Mal se ouvia a voz do homem, mas a mulher estava com muita, muita raiva, e xingava o companheiro das mais altas atrocidades. Pouco depois do Campo de São Cristovão, ali perto do larguinho da Citycol, onde há um sinal e geralmente um engarrafamento, ela grita:

- Abre aê, piloto, que eu vou descer!

O mototista abriu a porta, mas a discussão estava tão acalorada que ela não desceu. O ônibus permaneceu parado, devido ao engarramento - e com as portas abertas -, e a mulher também permaneceu na briga com o homem. A troca de queixumes e palavrões estava dando à viagem um certo humor e os passageiros riam discretamente da situação. Quem disse que crackudo não entra em crise de relação? Eu hein. Mas o motorista não curtiu, levantou, virou-se pra trás e gritou:

- Vai descer não, ô crackuda da porra?

Nem um pouco abalada, ela não respondeu. Não respondeu nem desceu. Continuou gastando todo o seu português com o moço. E o motorista, mais irritado:

- Vai consertar os dentes dessa boca, filha da puta. Desce dessa porra agora. 

Foi aí que se estabeleceu o silêncio. Climão no 474. A crackuda da porra parou de falar, ficou quieta nos fundos do ônibus e houve um leve constrangimento no coletivo. Mas ela não desceu. O trânsito fluiu, o ônibus começou a andar e ouviu-se o sinal da cigarrinha solicitando parada no próximo ponto. E, para a nossa surpresa, a crackuda desceu. 

Muitíssimo insatisfeito, o motorista gritou mais uma porção de palavrões, amaldiçoou algumas gerações, e eis que a crackuda, já na calçada, acompanhando o ônibus que se movimentava lentamente, chega na porta dianteira balançando os ombros e, com um sorriso muito sarcástico, diz ao motorista:

- Ué, não sabia que é proibido descer passageiro fora do ponto não?

Nada como um fora cheio de sutileza. 

domingo, 29 de julho de 2012

O sentimento por inteiro de uma beleza


Hoje, no dia 29 de julho, não estamos próximos a nenhuma data significativa para a cidade do Rio de Janeiro. Já passamos do dia de são Sebastião, do aniversário da cidade, do dia de são Jorge também. No entanto, foi neste domingo, um domingo qualquer, que pairaram sobre mim algumas reflexões simplórias sobre morar aqui, sobre o sentimento honesto e sincero de ser carioca. E nada como um dia sem relevância pra escrever sobre um sentimento.

Como um exemplo da cidade cosmopolita, caótica, maravilhosa e pluritudo, sou uma carioca da gema. Carioca nascida em Salvador. Fui direto da Rodoviária Novo Rio para a casa da minha avó, em Realengo. Das memórias distantes de uma menina com seis anos de idade, guardo poucas coisas, mas muito imagéticas e felizes. Algumas tardes montando pipa com meu pai, colando rabiola, tentando empiná-la sem muito sucesso; algumas quedas de bicicleta pelas ruas de Realengo, com pausas pra beber guaraná Pakera em vendinhas de outras ruelas; vôlei e queimado com vizinhos; madrugadas chuvosas que inundavam a casa da minha avó; algumas 18h em ponto em que eu rezava a ave-maria com ela e que a emocionam até hoje, e por aí vai.

E ao longo dos anos, conforme a gente vai crescendo, nossos horizontes se ampliam também: explora-se mais Realengo, depois a Zona Oeste, depois o subúrbio, depois a cidade inteira. E aquele sentimento de pertencimento ao lugar, de bom filho que, mesmo indo, um dia à casa torna.

Toda essa nostalgia veio por causa da tarde de ontem: tive a oportunidade de passar algumas horas com uma pessoa cuja presença não era das mais agradáveis e que, por alguns momentos, pensei ter me dado o desprazer de estar ao seu lado. Logo depois percebi o quão positiva poderiam ser suas afirmações, visto que podemos sempre refletir e tirar proveito com o mínimo de sabedoria sobre as situações. E da porção de disparates que a pessoa declarou, veio um clichê que por fora me fez rir mas na verdade deu uma vontadinha de chorar: "Não existe Rio de Janeiro depois do Rebouças".

Sempre ouço o diacho dessa frase. Há pouco tempo, a cidade foi declarada patrimônio mundial da humanidade e não faltam vídeos que mostrem as belezas das praias, das mulheres, da natureza etc. Copacabana, Ipanema, Leblon, quando muito, ousadamente a Lapa. Sempre me inquieta pensar que ilustra a cidade uma média de vinte bairros sendo que na realidade ela é composta, por alto, por em média uma centena. Uma centena ignorada que, entretanto, possui uma beleza, infelizmente desconhecida por muitos.

Muitas pessoas vão dizer que o tratamento dado às zonas Norte e Oeste não se equipara ao dado à Zona Sul. A discrepância entre os projetos urbanísticos é notável, bem como outras questões de infraestrutura que não cabe discutir agora. Mas não me refiro à beleza óbvia pela qual todos esperam – as pedrinhas da calçada que estão no lugar, os coqueiros enfileirados, o padrão arquitetônico e a gradação melanínica de seus habitantes, esta última de suma relevância pra muita gente –, e sim a uma representação cultural que existe e de fato é aquela que compõe a identidade do subúrbio, muitas vezes abstrata, muitas vezes subjetiva, mas visível. É na arquitetura desajeitada das casas que compõem uma unidade inconfundível, nas peladas em quadras descampadas, nos jogos do bicho em mesinhas esquinas afora, nos coretos de carnaval, nas pracinhas ao lado das escolas e nas calçadas ocupadas por cadeiras de praia que habita uma beleza que poucos perceberão, porque demandam uma percepção humana. Não apenas uma percepção memorialística, mas sensível. É nesta beleza que habita a encantadora alma das ruas.

No fim das contas, essa pessoa me fez ao menos perceber – mais uma vez – o quão feliz e orgulhosa sou por ser suburbana, por conseguir abraçar a beleza do Arpoador com a mesma intensidade que abraço a beleza da avenida Cônego de Vasconcelos. Realmente, pra ela, o Rio de Janeiro não passará nunca do Rebouças. Porque mundo tem o tamanho que a gente quer.