segunda-feira, 15 de julho de 2013

De Almodovariano e louco todo mundo tem um pouco



Não sou cinéfila nem pretensa entendedora da sétima arte, mas mesmo sendo leiga, como apreciadora, percebo que existe uma cobrança muitas vezes injusta, imposta a autores de um recente grande sucesso. Fazer um filme genial às vezes deve ser ingrato... Espera-se que todos repitam e mantenham sempre a grandeza de uma obra anterior, com as mesmas doses de genialidade e maestria.

Por quê? Como diz o Amarante, ué, nem sempre!

Foi mais ou menos o que percebi neste recente filme do Almodóvar. Carregando ainda os louros (muito bem-merecidos, diga-se de passagem) de A Pele que Habito - filme pesado, surpreendente, aterrorizante e mais um bocado de adjetivos de impacto -, Almodóvar apresenta em seu novo longa, Amores Passageiros, algo muito distante das expectativas superestimadas nos últimos dois anos. Mas mostra que não perdeu a forma no quesito comédia, tampouco sua identidade marcante de tratar a sexualidade tão sem tabus, tão crua. E aqui de forma quase esdrúxula. Para quem já assistiu a seus filmes anteriores, imediatamente reconhece a fotografia, as temáticas que se entrecruzam e até mesmo o figurino.

Amores Passageiros é um filme leve, quase raso. Mas isso não significa que seja ruim.

Ele se passa basicamente em apenas um cenário: um avião. Ao serem informados sobre um defeito nos trens de pouso, os passageiros e a tripulação, que até então eram meros estranhos uns aos outros, sentindo a iminência da morte partilham seus mais sórdidos segredos e deixam aflorar os mais instintivos desejos. O legal é que o universo de Almodóvar é sempre habitado por pessoas sempre à margem daquilo que a sociedade espera "normais" (homossexuais, artistas, pessoas com desequilíbrios psiquiátricos) e mais um bocado de pessoas convencionadas como normais, mas cujas máscaras se destroem em situações extremas e insólitas.

Em cada um de nós habita um louco, e a comédia de Almodóvar chega ser um retrato realista dentro de uma estética surrealista. Um humor com pitadas de pastelão e uma bela despida psicológica, própria para quem gosta de ver a alma humana nua e crua. Além da delícia de ver Paz Vega, Penelope Cruz e Banderas fazendo pontinhas sensacionais.

Então, gente chatolina: se vocês esperam um filme genial, percam as esperanças e sigam ao cinema prontos para ver apenas mais um filme, um bom filme.

domingo, 16 de junho de 2013

The only salvation from the horror of existence

"[...] arte é um trabalho assim mais maneiro, é que é assim mesmo. Pode até não ser, mas parece. É aquele trabalho que não é a luta de todo dia. Tá certo que tem uns que lutam com isso mas... Arte é um que-fazer assim que inventa uma alegriazinha, a senhora compreende? Quer dizer, trabalho mesmo não é, que trabalho é como uma dor. E escola também. Pros pobres é. A gente acostuma porque é a vida e... vai indo, vai indo..."
(depoimento de uma mãe de aluno, respondendo à professora sobre "o que é arte".)



Se existe uma coisa que me dá bastante gosto de ler são os documentos oficiais de educação. Há anos não leciono, mas vejo uma beleza tão grande na visão política contida nesses textos que me sinto feliz em perceber que há perspectivas tão acuradas da prática pedagógica, embora infelizmente muitas vezes tudo isso não seja compatível com a realidade de quem efetivamente o faça.

Dentre esses documentos, gosto mais das Orientações Curriculares Nacionais, que apresentam uma proposta muito profunda pra justificar o ensino de literatura na educação básica, dados os contextos sociais nos quais muitas escolas se encontram.

Não pretendo aqui entrar com detalhes no texto, mas vale sucintamente apontar algumas ideias. Segundo o texto, arte é o

"meio de transcender o simplesmente dado, mediante o gozo da liberdade que só a fruição estética permite; como meio de acesso a um conhecimento que objetivamente não se pode mensurar; como meio, sobretudo, de humanização do homem coisificado: esses são alguns dos papéis reservados às artes, de cuja apropriação todos têm direito. Diríamos mesmo que têm mais direito aqueles que têm sido, por um mecanismo ideologicamente perverso, sistematicamente mais expropriados de tantos direitos, entre eles até o de pensar por si mesmos."

Sempre que leio esse texto, vejo uma amplitude no ideal exposto; que não se restringe apenas à questão do ensino das artes, e sim ao direito que todos têm, enquanto seres humanos, de experimentar a catarse, de vivenciar o sublime e o belo, de utilizar tais experiências como meios de transformar existência em vida. O depoimento da mãe de um aluno evidencia de uma forma ingenuamente sincera essa visão dicotômica de arte/trabalho, prazer/dor, beleza/utilidade. 

Anteontem eu estava de folga e fui passear no centro da cidade (andar pelo centro é uma atividade tão simplória, mas que desde a adolescência me fascinou; adoro observar a heterogeneidade das pessoas, da arquitetura, dos cheiros... captar a encantadora alma das ruas). Voltando já para casa, no fim da tarde, enquanto as pessoas se dirigiam apressadas às estações de metrô e aos pontos de ônibus, observei uma aglomeração considerável em volta de uma banca de jornais. Não conseguia enxergar o que havia lá, mas se tratava de algo que captava o sorriso de todos à volta. E esses todos à volta eram compostos de público diversificado, entre os quais executivos engravatados, engraxates, catadores de latinha e estudantes uniformizados. 

Cheguei mais perto, me embrenhei no grupo e vi que toda a comoção girava ao redor de uma televisão que transmitia a ópera Carmen, de Bizet. Enquanto todos sorriam, fiquei me perguntando quantos ali sabiam quem era Bizet, qual a importância da peça, o que era belle-époque. E de que tudo isso importava? Bizet, naquele momento, exercia a função de unir a todos em sua igualdade, despertando em cada um seu caráter humano, tão carecido em nosso dia a dia, essencialmente voltado à produtividade feroz, a resultados concretos alcançados através de ações mecânicas e objetivos pragmáticos. Naquele momento havia arte, beleza, enlevação. 

As ideias das Orientações Curriculares Nacionais somente ratificam o que nas ruas se demonstra incessantemente. Que retirem o direito de se expressar, que oprimam os sentimentos, que coisifiquem e imbecilizem as pessoas através da tecnologia individualista; haverá sempre quem se queira e quem se faça ser e humano. 

quinta-feira, 16 de maio de 2013

Os nossos direitos humanos de cada dia

Toda essa polêmica em torno da eleição do pastor Marco Feliciano para a Comissão de Direitos Humanos deixou à mostra a capacidade de engajamento e a sensibilidade da população quando o assunto são as minorias, a opressão social, o racismo e todos os preconceitos que infelizmente ainda assolam nossa sociedade. Não estão sendo poucas as manifestações nas ruas, nas redes sociais, nas conversas rotineiras. É muito bonito e fico realmente feliz em ver que ainda existe uma geração consciente e capaz de se mobilizar pelas causas dos próximos. Sobretudo neste caso, quando se trata de um indivíduo que representa qualquer coisa de abominável e nada de direitos humanos.

O que me inquieta um pouco é justamente o paradoxo dessas sensibilidade e consciência. Um dia desses, eu estava indo comprar uma cômoda na Casas Bahia, em uma filial bem grande, e, assim que entrei, percebi que a loja, embora cheia, estava silenciosa, só sendo possível escutar a voz agressiva e bem alta de uma mulher, nos fundos. Chegando lá, vi que era uma cliente descontrolada chamando, aos berros, a funcionária -- que estava sentada àquelas mesas individuais onde os atendentes fazem de pesquisas -- de incompetente, burra, desqualificada etc. Uma cena estarrecedora. A cliente, chorando, tentava explicar que o sistema estava fora do ar e não era possível verificar o preço e o estoque de um móvel. Sem escutar, a cliente continuava gritando e humilhando a mulher da forma mais baixa, grosseira e vil.

Não sei há quanto tempo a situação já durava, mas presenciei uns bons dez minutos. Tratava-se de um explícito caso de constrangimento, difamação, assédio moral. O curioso é que as pessoas ao redor nada faziam: ficavam olhando, por vezes cochichando, por vezes rindo aos cantos. Um bafão, vejam! Não sei se por eu ter sofrido algo semelhante recentemente, eu e o Guga decidimos chegar perto da funcionária e entregar um papel com nosso telefone. Dissemos que estaríamos dispostos a ser testemunhas de que ela sofrera humilhação pública no caso de a empresa querer prejudicá-la de alguma forma. A tal da cliente estava tão furiosa que sequer nos viu fazendo tudo isso. (Claro, fomos convidados a nos retirar da loja e depois compramos uma cômoda artesanal bem mais bonita.)

No final a mulher não ligou e tudo deve ter ficado por isso mesmo. Esse fato me faz questionar nosso "senso social" e a hipersensibilidade que temos em relação aos líderes políticos, às tribos desalojadas, aos grupos sociais que diariamente aparecem nos jornais sendo vítimas de agressão, assassinato, humilhação e opressão, sob justificativas sociais, religiosas ou desculpa nenhuma. É realmente revoltante e deprimente o que acontece. Mas o que se passa à nossa volta? Não temos coragem de interpelar um caso de assédio moral em público, de olhar nos olhos daquele que nos pede uma moeda na rua, de oferecer ajuda a um desconhecido. Seja por precaução, por vergonha ou por simplesmente nem perceber, negamos diariamente uma parte do nosso exercício de direitos humanos e talvez a culpa seja bastante minimizada pelo fato de cada ato desses não se encontrar em uma cartilha universal.

Eu estou na luta, e quase de luto, pelos direitos humanos. Não (somente) por causa do pastor execrável, mas pela parcela maior deste exercício, vertical, que não é cumprida. Aliás, a parcela que faz urgir a necessidade de se criar esta comissão...