domingo, 16 de junho de 2013

The only salvation from the horror of existence

"[...] arte é um trabalho assim mais maneiro, é que é assim mesmo. Pode até não ser, mas parece. É aquele trabalho que não é a luta de todo dia. Tá certo que tem uns que lutam com isso mas... Arte é um que-fazer assim que inventa uma alegriazinha, a senhora compreende? Quer dizer, trabalho mesmo não é, que trabalho é como uma dor. E escola também. Pros pobres é. A gente acostuma porque é a vida e... vai indo, vai indo..."
(depoimento de uma mãe de aluno, respondendo à professora sobre "o que é arte".)



Se existe uma coisa que me dá bastante gosto de ler são os documentos oficiais de educação. Há anos não leciono, mas vejo uma beleza tão grande na visão política contida nesses textos que me sinto feliz em perceber que há perspectivas tão acuradas da prática pedagógica, embora infelizmente muitas vezes tudo isso não seja compatível com a realidade de quem efetivamente o faça.

Dentre esses documentos, gosto mais das Orientações Curriculares Nacionais, que apresentam uma proposta muito profunda pra justificar o ensino de literatura na educação básica, dados os contextos sociais nos quais muitas escolas se encontram.

Não pretendo aqui entrar com detalhes no texto, mas vale sucintamente apontar algumas ideias. Segundo o texto, arte é o

"meio de transcender o simplesmente dado, mediante o gozo da liberdade que só a fruição estética permite; como meio de acesso a um conhecimento que objetivamente não se pode mensurar; como meio, sobretudo, de humanização do homem coisificado: esses são alguns dos papéis reservados às artes, de cuja apropriação todos têm direito. Diríamos mesmo que têm mais direito aqueles que têm sido, por um mecanismo ideologicamente perverso, sistematicamente mais expropriados de tantos direitos, entre eles até o de pensar por si mesmos."

Sempre que leio esse texto, vejo uma amplitude no ideal exposto; que não se restringe apenas à questão do ensino das artes, e sim ao direito que todos têm, enquanto seres humanos, de experimentar a catarse, de vivenciar o sublime e o belo, de utilizar tais experiências como meios de transformar existência em vida. O depoimento da mãe de um aluno evidencia de uma forma ingenuamente sincera essa visão dicotômica de arte/trabalho, prazer/dor, beleza/utilidade. 

Anteontem eu estava de folga e fui passear no centro da cidade (andar pelo centro é uma atividade tão simplória, mas que desde a adolescência me fascinou; adoro observar a heterogeneidade das pessoas, da arquitetura, dos cheiros... captar a encantadora alma das ruas). Voltando já para casa, no fim da tarde, enquanto as pessoas se dirigiam apressadas às estações de metrô e aos pontos de ônibus, observei uma aglomeração considerável em volta de uma banca de jornais. Não conseguia enxergar o que havia lá, mas se tratava de algo que captava o sorriso de todos à volta. E esses todos à volta eram compostos de público diversificado, entre os quais executivos engravatados, engraxates, catadores de latinha e estudantes uniformizados. 

Cheguei mais perto, me embrenhei no grupo e vi que toda a comoção girava ao redor de uma televisão que transmitia a ópera Carmen, de Bizet. Enquanto todos sorriam, fiquei me perguntando quantos ali sabiam quem era Bizet, qual a importância da peça, o que era belle-époque. E de que tudo isso importava? Bizet, naquele momento, exercia a função de unir a todos em sua igualdade, despertando em cada um seu caráter humano, tão carecido em nosso dia a dia, essencialmente voltado à produtividade feroz, a resultados concretos alcançados através de ações mecânicas e objetivos pragmáticos. Naquele momento havia arte, beleza, enlevação. 

As ideias das Orientações Curriculares Nacionais somente ratificam o que nas ruas se demonstra incessantemente. Que retirem o direito de se expressar, que oprimam os sentimentos, que coisifiquem e imbecilizem as pessoas através da tecnologia individualista; haverá sempre quem se queira e quem se faça ser e humano.