segunda-feira, 29 de setembro de 2008

Correio de Manhã
29 de setembro de 1908


Morreu Machado de Assis.
Perde a nossa lingua um dos seus mais vigorosos e profundos escriptores.
Com ele desaparece a mais leve e a mais encantadora das nossas prosas, a mais completa e a mais perfeita das organizações literarias que possuimos.
Poeta, romancista, dramaturgo e jornalista, era Machado de Assis o typo culminante e o mais synpathico do nosso mundo de letras.
Sua perda é irreparavel. Num paiz como o nosso, já tão pobre de espiritos brilhantes como o seu, esse desaparecimento é mais importante do que parece.
Finda com o Memorial de Aires o cyclo glorioso da sua obra, livro *e**nte a cujo succeso literario ainda ele pode assistir na vespera da morte.
Não mais nos será dado ler novos primores da penna que escreveu Quincas Borba e D. Casmurro. Machado de Assis desapparece e embora cubram-lhe a tainha de flores e sua memoria da mais profunda saudade, do seu estro so nos restara a lembrança que nos seus livros, no entanto, palpitara sempre luminosa e forte como um sol.
***
Quem entrasse, ás 4 horas, no Garnier havia de ver invariavelmente, um homem pequeno, franzino, de barba curta e quasi branca, sempre numa das cadeiras que correm a fila das brochuras francezas, entre as pernas um indefectível guarda-chuva.
Tinha um ar cansado, se bem que a physionomia lhe sorrisse todas as vezes que um cahpéu se erguesse ou uma mão apertasse a sua, sempre com grande interesse e respeito.
Era Machado de Assis.
Fechada a sua repartição, subia elle Ouvidor acima, caminho do Garnier, áquella mesma hora sempre, com o seu passo rythimico e nervoso de quem vae ao cumprimento de um dever sagrado.
Entrava de chapéu na mão , porque todos se descobriam á sua passagem, e depois de relancear a vista pelas lombadas de livros expostos, procurava a sua cadeira e punha-se a folhear uma brochura qualquer, sempre com um grande ar de abstração e tristeza.
Mas iam chegando, lentamente, os grupos, as mãos que lhe estendiam, as phrases que indagavam pela sua saúde, e elle, sempre muito risonho, muito timido, no meio daqueles homens que o cercavam era como uma criança mimada, querida, bajulada.
Um verdadeiro enternecimento.
E velhos e novos, academicos e poetas que surgissem, oculos e cabelleiras, cercavam-no com interesse, com curiosidade ou admiração.
De toda a grande nave da livraria, era a figura mais querida, a mais vista e a mais admirada.
Dizia-se – o mestre, olhava-se a sua cabeça branca quando elle se descobria, com veneração, como que a dizer baixinho – aquelle foi o que escreveu o Braz Cubas.
Estranha e original organização que não pode ter o relevo merecido nestas linhas escriptas ao correr da penna.
Era um modesto e um curioso. Duas relações superiores do seu espírito.
Detestava a reclame, a effusão encomiastica da phrase dos outros sobre as suas obras; sorria quase dolorosamente quando lhe diziam que era o maior dos nossos homens de letras. Uma modestia verdadeiramente morbida.
Não dizia jamais os seus projetos literarios, sempre dentro da maior reserva, mesmo para com os seus intimos. Entregava os originaes dos seus livros ás escondidas, pedia que nada se dissesse aos jornaes e da sua obra só se vinha a saber, que aparecia na montra das livrarias, e se azamafavam os caixeiros em vender edições que se esgotavam rapidamente.
De uma generosidade absoluta, odiava a polemica, aceitava a todos, a todos sorria, confundindo no mesmo olhar de sympathia o seu maior amigo e o seu maior inimigo.
Da sua boca raro saía uma palavra má, ou de censura para um homem ou para uma coisa. Verdade que as suas affirmações eram raras e grande, enorme, a sua reserva.
Sente-se isso em toda a sua obra.
Difficilmente affirmava.
Dir-se-ia guardar sempre um julgamento posterior para o julgamento por elle proprio firmado.
Perguntassem-lhe, por exemplo, sobre a superioridade do poeta A sobre o poeta B, elle dizia:
- A é muito bom, porém muito bom também é B.. Ambos são muito bons, dahi, talvez, ambos não valham nada…
Dizem que sempre foi assim, Machado de Assis.
A ultima vez que o vimos e que indagamos pela sua saúde já ferida de morte:
- Mestre, então, vae melhor?
Ele respondeu:
- Não sei. Já me senti muito mal, porém parece que não estou melhor. Dizem os médicos que isso é sem cuidado. Não sei si deva crer nos medicos.
Ainda o mesmo, cai*inha da morte, com quasi setenta anos, com o seu eterno temor de nada affirmar, como que si tudo nesta terra não merecesse nem uma certeza nem uma affirmação.

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