segunda-feira, 15 de julho de 2013

De Almodovariano e louco todo mundo tem um pouco



Não sou cinéfila nem pretensa entendedora da sétima arte, mas mesmo sendo leiga, como apreciadora, percebo que existe uma cobrança muitas vezes injusta, imposta a autores de um recente grande sucesso. Fazer um filme genial às vezes deve ser ingrato... Espera-se que todos repitam e mantenham sempre a grandeza de uma obra anterior, com as mesmas doses de genialidade e maestria.

Por quê? Como diz o Amarante, ué, nem sempre!

Foi mais ou menos o que percebi neste recente filme do Almodóvar. Carregando ainda os louros (muito bem-merecidos, diga-se de passagem) de A Pele que Habito - filme pesado, surpreendente, aterrorizante e mais um bocado de adjetivos de impacto -, Almodóvar apresenta em seu novo longa, Amores Passageiros, algo muito distante das expectativas superestimadas nos últimos dois anos. Mas mostra que não perdeu a forma no quesito comédia, tampouco sua identidade marcante de tratar a sexualidade tão sem tabus, tão crua. E aqui de forma quase esdrúxula. Para quem já assistiu a seus filmes anteriores, imediatamente reconhece a fotografia, as temáticas que se entrecruzam e até mesmo o figurino.

Amores Passageiros é um filme leve, quase raso. Mas isso não significa que seja ruim.

Ele se passa basicamente em apenas um cenário: um avião. Ao serem informados sobre um defeito nos trens de pouso, os passageiros e a tripulação, que até então eram meros estranhos uns aos outros, sentindo a iminência da morte partilham seus mais sórdidos segredos e deixam aflorar os mais instintivos desejos. O legal é que o universo de Almodóvar é sempre habitado por pessoas sempre à margem daquilo que a sociedade espera "normais" (homossexuais, artistas, pessoas com desequilíbrios psiquiátricos) e mais um bocado de pessoas convencionadas como normais, mas cujas máscaras se destroem em situações extremas e insólitas.

Em cada um de nós habita um louco, e a comédia de Almodóvar chega ser um retrato realista dentro de uma estética surrealista. Um humor com pitadas de pastelão e uma bela despida psicológica, própria para quem gosta de ver a alma humana nua e crua. Além da delícia de ver Paz Vega, Penelope Cruz e Banderas fazendo pontinhas sensacionais.

Então, gente chatolina: se vocês esperam um filme genial, percam as esperanças e sigam ao cinema prontos para ver apenas mais um filme, um bom filme.

domingo, 16 de junho de 2013

The only salvation from the horror of existence

"[...] arte é um trabalho assim mais maneiro, é que é assim mesmo. Pode até não ser, mas parece. É aquele trabalho que não é a luta de todo dia. Tá certo que tem uns que lutam com isso mas... Arte é um que-fazer assim que inventa uma alegriazinha, a senhora compreende? Quer dizer, trabalho mesmo não é, que trabalho é como uma dor. E escola também. Pros pobres é. A gente acostuma porque é a vida e... vai indo, vai indo..."
(depoimento de uma mãe de aluno, respondendo à professora sobre "o que é arte".)



Se existe uma coisa que me dá bastante gosto de ler são os documentos oficiais de educação. Há anos não leciono, mas vejo uma beleza tão grande na visão política contida nesses textos que me sinto feliz em perceber que há perspectivas tão acuradas da prática pedagógica, embora infelizmente muitas vezes tudo isso não seja compatível com a realidade de quem efetivamente o faça.

Dentre esses documentos, gosto mais das Orientações Curriculares Nacionais, que apresentam uma proposta muito profunda pra justificar o ensino de literatura na educação básica, dados os contextos sociais nos quais muitas escolas se encontram.

Não pretendo aqui entrar com detalhes no texto, mas vale sucintamente apontar algumas ideias. Segundo o texto, arte é o

"meio de transcender o simplesmente dado, mediante o gozo da liberdade que só a fruição estética permite; como meio de acesso a um conhecimento que objetivamente não se pode mensurar; como meio, sobretudo, de humanização do homem coisificado: esses são alguns dos papéis reservados às artes, de cuja apropriação todos têm direito. Diríamos mesmo que têm mais direito aqueles que têm sido, por um mecanismo ideologicamente perverso, sistematicamente mais expropriados de tantos direitos, entre eles até o de pensar por si mesmos."

Sempre que leio esse texto, vejo uma amplitude no ideal exposto; que não se restringe apenas à questão do ensino das artes, e sim ao direito que todos têm, enquanto seres humanos, de experimentar a catarse, de vivenciar o sublime e o belo, de utilizar tais experiências como meios de transformar existência em vida. O depoimento da mãe de um aluno evidencia de uma forma ingenuamente sincera essa visão dicotômica de arte/trabalho, prazer/dor, beleza/utilidade. 

Anteontem eu estava de folga e fui passear no centro da cidade (andar pelo centro é uma atividade tão simplória, mas que desde a adolescência me fascinou; adoro observar a heterogeneidade das pessoas, da arquitetura, dos cheiros... captar a encantadora alma das ruas). Voltando já para casa, no fim da tarde, enquanto as pessoas se dirigiam apressadas às estações de metrô e aos pontos de ônibus, observei uma aglomeração considerável em volta de uma banca de jornais. Não conseguia enxergar o que havia lá, mas se tratava de algo que captava o sorriso de todos à volta. E esses todos à volta eram compostos de público diversificado, entre os quais executivos engravatados, engraxates, catadores de latinha e estudantes uniformizados. 

Cheguei mais perto, me embrenhei no grupo e vi que toda a comoção girava ao redor de uma televisão que transmitia a ópera Carmen, de Bizet. Enquanto todos sorriam, fiquei me perguntando quantos ali sabiam quem era Bizet, qual a importância da peça, o que era belle-époque. E de que tudo isso importava? Bizet, naquele momento, exercia a função de unir a todos em sua igualdade, despertando em cada um seu caráter humano, tão carecido em nosso dia a dia, essencialmente voltado à produtividade feroz, a resultados concretos alcançados através de ações mecânicas e objetivos pragmáticos. Naquele momento havia arte, beleza, enlevação. 

As ideias das Orientações Curriculares Nacionais somente ratificam o que nas ruas se demonstra incessantemente. Que retirem o direito de se expressar, que oprimam os sentimentos, que coisifiquem e imbecilizem as pessoas através da tecnologia individualista; haverá sempre quem se queira e quem se faça ser e humano. 

quinta-feira, 16 de maio de 2013

Os nossos direitos humanos de cada dia

Toda essa polêmica em torno da eleição do pastor Marco Feliciano para a Comissão de Direitos Humanos deixou à mostra a capacidade de engajamento e a sensibilidade da população quando o assunto são as minorias, a opressão social, o racismo e todos os preconceitos que infelizmente ainda assolam nossa sociedade. Não estão sendo poucas as manifestações nas ruas, nas redes sociais, nas conversas rotineiras. É muito bonito e fico realmente feliz em ver que ainda existe uma geração consciente e capaz de se mobilizar pelas causas dos próximos. Sobretudo neste caso, quando se trata de um indivíduo que representa qualquer coisa de abominável e nada de direitos humanos.

O que me inquieta um pouco é justamente o paradoxo dessas sensibilidade e consciência. Um dia desses, eu estava indo comprar uma cômoda na Casas Bahia, em uma filial bem grande, e, assim que entrei, percebi que a loja, embora cheia, estava silenciosa, só sendo possível escutar a voz agressiva e bem alta de uma mulher, nos fundos. Chegando lá, vi que era uma cliente descontrolada chamando, aos berros, a funcionária -- que estava sentada àquelas mesas individuais onde os atendentes fazem de pesquisas -- de incompetente, burra, desqualificada etc. Uma cena estarrecedora. A cliente, chorando, tentava explicar que o sistema estava fora do ar e não era possível verificar o preço e o estoque de um móvel. Sem escutar, a cliente continuava gritando e humilhando a mulher da forma mais baixa, grosseira e vil.

Não sei há quanto tempo a situação já durava, mas presenciei uns bons dez minutos. Tratava-se de um explícito caso de constrangimento, difamação, assédio moral. O curioso é que as pessoas ao redor nada faziam: ficavam olhando, por vezes cochichando, por vezes rindo aos cantos. Um bafão, vejam! Não sei se por eu ter sofrido algo semelhante recentemente, eu e o Guga decidimos chegar perto da funcionária e entregar um papel com nosso telefone. Dissemos que estaríamos dispostos a ser testemunhas de que ela sofrera humilhação pública no caso de a empresa querer prejudicá-la de alguma forma. A tal da cliente estava tão furiosa que sequer nos viu fazendo tudo isso. (Claro, fomos convidados a nos retirar da loja e depois compramos uma cômoda artesanal bem mais bonita.)

No final a mulher não ligou e tudo deve ter ficado por isso mesmo. Esse fato me faz questionar nosso "senso social" e a hipersensibilidade que temos em relação aos líderes políticos, às tribos desalojadas, aos grupos sociais que diariamente aparecem nos jornais sendo vítimas de agressão, assassinato, humilhação e opressão, sob justificativas sociais, religiosas ou desculpa nenhuma. É realmente revoltante e deprimente o que acontece. Mas o que se passa à nossa volta? Não temos coragem de interpelar um caso de assédio moral em público, de olhar nos olhos daquele que nos pede uma moeda na rua, de oferecer ajuda a um desconhecido. Seja por precaução, por vergonha ou por simplesmente nem perceber, negamos diariamente uma parte do nosso exercício de direitos humanos e talvez a culpa seja bastante minimizada pelo fato de cada ato desses não se encontrar em uma cartilha universal.

Eu estou na luta, e quase de luto, pelos direitos humanos. Não (somente) por causa do pastor execrável, mas pela parcela maior deste exercício, vertical, que não é cumprida. Aliás, a parcela que faz urgir a necessidade de se criar esta comissão...

domingo, 9 de setembro de 2012

A crackuda do 474

Foi incorporado há alguns anos na língua portuguesa um novo vocábulo, a palavra crackudo, um neologismo que atende perfeitamente às necessidades de se classificar o usuário do crack. A composição é simples: a palavra crack, que corresponde aos cristais de cocaína, e o sufixo -udo, que em geral atribui ao seu radical o sentido de abundância, excesso, enfim, de características aumentadas. Pois bem, daí temos palavras como bocudo, cabeçudo, barbudo e, agora, o crackudo para aquele que está cheio do crack

Quem conhece alguma região onde existe uma cracolândia infelizmente já se deparou com as condições subumanas às quais são impostas todas as pessoas que ali vivem, não apenas os crackudos, que aliás, também vivem muito mal. De uns tempos pra cá, logicamente, como nossa sociedade não é boba nem nada, a palavra passou a se referir não apenas ao grupo de usuários da droga mas a toda corja social que negamos existir. O catador de latinhas que trabalha o dia inteiro sob o sol e à noite entra fedorento pelos fundos do ônibus? Crackudo. Um pretinho que foi assaltado e pede dinheiro pra voltar pra casa? Crackudo. O mendigo acometido por alguma doença maldita e que anda decrépito pelas ruas? Crackudo. Uma favelada sem dentes que bebeu demais e fez barraco na rua? Crackuda. Se estiver miserável, se se encontrar deplorável, este país já lhe dá um nome. E temos mais crackudos do que crackudos pelo Brasil. 

E foi em uma manhã comum, quando eu estava esperando o ônibus para ir trabalhar, que chegou no ponto um casal de mendigos tentando embarcar num ônibus que fosse ao Jacaré. Da combinação mendigos+Jacaré vocês já sabem em qual categoria eles se enquadram. Não obstante não sabermos seus hábitos, o fato é que, para todo o Rio de Janeiro, estavam à minha frente dois crackudos. Conversavam baixo, mas gesticulavam bastante, como se estivessem discutindo a relação. Quando chegou o meu ônibus, fiz o sinal, e eles aproveitaram para entrar também. 

Os dois estavam lá no fundo e, a certa altura, começaram a gritar. Brigar feio. Mal se ouvia a voz do homem, mas a mulher estava com muita, muita raiva, e xingava o companheiro das mais altas atrocidades. Pouco depois do Campo de São Cristovão, ali perto do larguinho da Citycol, onde há um sinal e geralmente um engarrafamento, ela grita:

- Abre aê, piloto, que eu vou descer!

O mototista abriu a porta, mas a discussão estava tão acalorada que ela não desceu. O ônibus permaneceu parado, devido ao engarramento - e com as portas abertas -, e a mulher também permaneceu na briga com o homem. A troca de queixumes e palavrões estava dando à viagem um certo humor e os passageiros riam discretamente da situação. Quem disse que crackudo não entra em crise de relação? Eu hein. Mas o motorista não curtiu, levantou, virou-se pra trás e gritou:

- Vai descer não, ô crackuda da porra?

Nem um pouco abalada, ela não respondeu. Não respondeu nem desceu. Continuou gastando todo o seu português com o moço. E o motorista, mais irritado:

- Vai consertar os dentes dessa boca, filha da puta. Desce dessa porra agora. 

Foi aí que se estabeleceu o silêncio. Climão no 474. A crackuda da porra parou de falar, ficou quieta nos fundos do ônibus e houve um leve constrangimento no coletivo. Mas ela não desceu. O trânsito fluiu, o ônibus começou a andar e ouviu-se o sinal da cigarrinha solicitando parada no próximo ponto. E, para a nossa surpresa, a crackuda desceu. 

Muitíssimo insatisfeito, o motorista gritou mais uma porção de palavrões, amaldiçoou algumas gerações, e eis que a crackuda, já na calçada, acompanhando o ônibus que se movimentava lentamente, chega na porta dianteira balançando os ombros e, com um sorriso muito sarcástico, diz ao motorista:

- Ué, não sabia que é proibido descer passageiro fora do ponto não?

Nada como um fora cheio de sutileza. 

domingo, 29 de julho de 2012

O sentimento por inteiro de uma beleza


Hoje, no dia 29 de julho, não estamos próximos a nenhuma data significativa para a cidade do Rio de Janeiro. Já passamos do dia de são Sebastião, do aniversário da cidade, do dia de são Jorge também. No entanto, foi neste domingo, um domingo qualquer, que pairaram sobre mim algumas reflexões simplórias sobre morar aqui, sobre o sentimento honesto e sincero de ser carioca. E nada como um dia sem relevância pra escrever sobre um sentimento.

Como um exemplo da cidade cosmopolita, caótica, maravilhosa e pluritudo, sou uma carioca da gema. Carioca nascida em Salvador. Fui direto da Rodoviária Novo Rio para a casa da minha avó, em Realengo. Das memórias distantes de uma menina com seis anos de idade, guardo poucas coisas, mas muito imagéticas e felizes. Algumas tardes montando pipa com meu pai, colando rabiola, tentando empiná-la sem muito sucesso; algumas quedas de bicicleta pelas ruas de Realengo, com pausas pra beber guaraná Pakera em vendinhas de outras ruelas; vôlei e queimado com vizinhos; madrugadas chuvosas que inundavam a casa da minha avó; algumas 18h em ponto em que eu rezava a ave-maria com ela e que a emocionam até hoje, e por aí vai.

E ao longo dos anos, conforme a gente vai crescendo, nossos horizontes se ampliam também: explora-se mais Realengo, depois a Zona Oeste, depois o subúrbio, depois a cidade inteira. E aquele sentimento de pertencimento ao lugar, de bom filho que, mesmo indo, um dia à casa torna.

Toda essa nostalgia veio por causa da tarde de ontem: tive a oportunidade de passar algumas horas com uma pessoa cuja presença não era das mais agradáveis e que, por alguns momentos, pensei ter me dado o desprazer de estar ao seu lado. Logo depois percebi o quão positiva poderiam ser suas afirmações, visto que podemos sempre refletir e tirar proveito com o mínimo de sabedoria sobre as situações. E da porção de disparates que a pessoa declarou, veio um clichê que por fora me fez rir mas na verdade deu uma vontadinha de chorar: "Não existe Rio de Janeiro depois do Rebouças".

Sempre ouço o diacho dessa frase. Há pouco tempo, a cidade foi declarada patrimônio mundial da humanidade e não faltam vídeos que mostrem as belezas das praias, das mulheres, da natureza etc. Copacabana, Ipanema, Leblon, quando muito, ousadamente a Lapa. Sempre me inquieta pensar que ilustra a cidade uma média de vinte bairros sendo que na realidade ela é composta, por alto, por em média uma centena. Uma centena ignorada que, entretanto, possui uma beleza, infelizmente desconhecida por muitos.

Muitas pessoas vão dizer que o tratamento dado às zonas Norte e Oeste não se equipara ao dado à Zona Sul. A discrepância entre os projetos urbanísticos é notável, bem como outras questões de infraestrutura que não cabe discutir agora. Mas não me refiro à beleza óbvia pela qual todos esperam – as pedrinhas da calçada que estão no lugar, os coqueiros enfileirados, o padrão arquitetônico e a gradação melanínica de seus habitantes, esta última de suma relevância pra muita gente –, e sim a uma representação cultural que existe e de fato é aquela que compõe a identidade do subúrbio, muitas vezes abstrata, muitas vezes subjetiva, mas visível. É na arquitetura desajeitada das casas que compõem uma unidade inconfundível, nas peladas em quadras descampadas, nos jogos do bicho em mesinhas esquinas afora, nos coretos de carnaval, nas pracinhas ao lado das escolas e nas calçadas ocupadas por cadeiras de praia que habita uma beleza que poucos perceberão, porque demandam uma percepção humana. Não apenas uma percepção memorialística, mas sensível. É nesta beleza que habita a encantadora alma das ruas.

No fim das contas, essa pessoa me fez ao menos perceber – mais uma vez – o quão feliz e orgulhosa sou por ser suburbana, por conseguir abraçar a beleza do Arpoador com a mesma intensidade que abraço a beleza da avenida Cônego de Vasconcelos. Realmente, pra ela, o Rio de Janeiro não passará nunca do Rebouças. Porque mundo tem o tamanho que a gente quer.

sábado, 6 de novembro de 2010

Dois pesos, duas medidas

Amanhã completará uma semana da eleição de Dilma Rousseff à presidência do Brasil e, com isso, uma semana de discussões dos mais diversos cunhos e também das manifestações mais baixas que eu já vi ao longo de toda a minha vida. Se a internet leva os maiores méritos por democratizar a comunicação, encurtar distâncias, propagar mensagens construtivas em tempo real, é ela também a responsável por propagar uma quantidade absurda em tempo recorde de besteiras imensuráveis. Como tudo tem um lado, é o preço que se paga, e cabe a nós a sujeição a tudo isso e a capacidade crítica de discernir o que deve ser absorvido positivamente ou não.

Um exemplo recente das agruras da internet foi o caso da estudante de Direito Mayara Petruso, cuja história todo mundo conhece, ao menos por alto: revoltada com a vitória da candidata petista à presidência com uma porcentagem significativa nos estados do Norte e do Nordeste, a menina publicou em seu twitter uma mensagem clamando pelo assassinato por afogamento dos nordestinos; a OAB entrou com uma ação contra ela, e agora a menina de alta instrução intelectual da elite brasileira responde por crime de racismo e por incitação pública de prática de homicídio. Após sua mensagem haver repercutido no país e no mundo, ela apagou o twitter, como se dissesse: “esqueçam tudo o que escrevi”. Um site contra xenofobia denuncia casos semelhantes Brasil afora e ainda há quem reclame que ela tenha razão.

Após a vitória de Dilma Rousseff, ainda que esteja matematicamente comprovado que sua eleição seria inevitável mesmo nos estados do Sudeste, do Centro-oeste e do Sul, os protestos de pessoas autoproclamadas superiores aumentaram: dizem-se revoltadas por terem de viver durante mais quatro anos sob a gestão de um governo escolhido sobretudo por analfabetos, miseráveis, por pessoas facilmente manipuláveis por programas assistencialistas e de marketing barato.

Alguns são mais polidos, realmente. Não incitam assassinato, nem por afogamento nem por câmara a gás (essa sugestão ocorreu também!), mas sugerem a separação do país ao meio ou ao menos se dizem indignadíssimos com o fato de serem de tamanha qualificação, contribuintes honestos, pagantes de altos impostos, e terem de sustentar meio país, famigerado e vagabundo, que, ao invés de trabalhar arduamente, coloca um governo populista no poder e impede sua aceleração econômica.

A discussão nos últimos dias centralizou-se basicamente neste ponto: “assistencialismo”. Insatisfeitos com os programas de inclusão social, que alavancaram milhares de famílias a um poder aquisitivo maior, oportunizando acesso às universidades privadas, a internet rápida, a celulares modernos, a crédito financeiro facilitado para abertura de microempresas ou investimentos na zona rural, a classe média viu-se em dado momento sentando-se ao lado da manicure no voo de avião e recebendo na sala de jantar o rebento da empregada paraíba para discutir o trabalho da faculdade junto com seu filho: uma ameaça à sua dignidade e à sua pureza. É claro que para uma pessoa razoavelmente distinta tais argumentos não podem ser claramente enunciados, e aí entra o discurso do “sou a favor de um governo que ensine a pescar e não dê o peixe.” Assim cada um fica no seu quadrado, já diria o filósofo, e, de quebra, o rebento da paraíba aprende a pescar e continua lhe servindo o peixe na sala de jantar. Olha que genial.

Dia desses um formador de opinião questionou em um veículo de comunicação: “Aqui no Brasil é assim, a pessoa bota um filho no mundo, cruza os braços e fala, ‘Agora toma conta, governo!’”.

Pois é. De fato existem pessoas cuja mentalidade é tão miserável quanto a sua condição social, e o histórico é longo. No início do século XX, na época de Oswaldo Cruz, em que se buscava erradicar a peste bubônica no Brasil, pagava-se à população uma certa quantia por cada quilo de rato morto entregue aos funcionários de uma instituição que hoje corresponderia ao Ministério da Saúde. O resultado, imaginem: começaram a criar ratos em casa para entregar mais ratos mortos aos funcionários e assim faturarem mais dinheiro. Como um atavismo social, até hoje há quem invista em filhos para garantir o Bolsa Família, em uma péssima associação de ratos a pessoas. Uma realidade verdadeiramente lamentável.

O argumento de que se trata de ignorância puramente advinda da falta de instrução acadêmica, de características étnicas de determinado grupo regional (?), de uma certa tendência a ser comprado por uma Bolsa-Esmola da vida, por comprovações práticas, não rola. Independentemente da classe social, do grau de instrução, da região do país, o fato é que, cá entre nós, vivemos nosso dia a dia contando com a oportunidade de mamar na teta do governo – inclusive os próprios contribuintes honestos e pagantes de altos impostos que supostamente sustentam metade de um país vagabundo e miserável, na verdade, assistencializam-se a si próprios e são também protagonistas da própria miséria e vagabundagem a que tanto reclamam sustentar.

Vou citar apenas alguns exemplos que me vêm à mente agora: deixe-me contar na mão quantas pessoas conheço que pediram demissão e fizeram acordo pra ganhar seguro-desemprego e inclusive postergaram a procura por um novo emprego pra ficar um tempinho ganhando dinheiro sem fazer nada. Hmm, deixa eu contar nos pés também. Algo absolutamente corriqueiro e ingênuo. Pois é, esse dinheiro vem do governo; é do contribuinte. Você é instruído, vai viver desse dinheiro que serve de assistência, mas porque você não é um miserável, não é um analfabeto nem um nordestino, você não é vagabundo. É essa a lógica? Quando eu era bolsista do CNPq, conhecia uma porção de pessoas que tinham emprego, mas não assinavam carteira pra não comprovar vínculo empregatício e assim ganhar a bolsa no centro de pesquisa federal, que ultrapassava os MIL REAIS por mês e era direcionado para que a pessoa se dedicasse integralmente ao projeto de pesquisa acadêmico. Esse dinheiro era uma assistência ao pesquisador. Mas o cara é pós-graduado: viver às custas do governo de forma antiética pode? Porque soa bonito: é renda-extra pro mestrando, pro doutorando viajar pra Europa e trocar de carro com o dinheiro do contribuinte quando na verdade deveria ser a sua única forma de renda enquanto ele se dedicaria à vida acadêmica. Mas os R$200 que complementam a renda pro vagabundo comer doem nos nossos bolsos e levam os cofres públicos à falência suprema. Como sugeriu Maria Rita Kehl no artigo que valeu a sua demissão mês passado naquele democrático jornal paulista, temos para cada "dois pesos..." duas medidas.

Os altos índices de escolaridade em outros estados que elegeram Serra ou candidatos de demais partidos não significam absolutamente nada. Vivemos em um período de despartidarização, de contradições e ceticismos ideológicos quase plenos: sabemos disso. O estado que elegeu Serra é o mesmo estado que elegeu Tarso Genro e o mesmo estado que elege Mickey e Pateta. O estado que elegeu Dilma é mesmo o estado que elegeu Garotinho e o mesmo estado que elegeu Marcelo Freixo. E aí?

Em contrapartida, esses mesmos programas assistencialistas que sustentam grandes hipócritas e parasitas sociais são os mesmos que fomentam pesquisas de qualidade e contribuem para o crescimento do universo acadêmico no país; são os mesmos que ajudam a pagar as contas daqueles que por uma razão ou por outra se encontram desempregados à procura de uma nova oportunidade; são os mesmos que oportunizam aqueles a entrar em uma universidade particular com uma bolsa de desconto integral, por não terem tido condições de investir alto na educação básica e concorrer de forma leal com os que dominam no ensino superior público (foi o meu caso); são os mesmos que disponibilizam um dinheiro mínimo para que uma pessoa cruze os braços e se negue a trabalhar a uma jornada desumana por uma renda miserável e, com esse dinheiro, possa exigir seus direitos sabendo que não morrerá de inanição.

A miséria espiritual é maior do que a social, e nem posso dizer “hoje em dia”. Qual é a vagabundagem que nós sustentamos?

Termino este texto parafraseando a infeliz Mayara Petruso e pedindo-lhes um grande favor: matemos afogados a nossa hipocrisia.

terça-feira, 16 de março de 2010

O BBB e os agentes emburrecedores

O Big Brother Brasil chega à sua décima edição, apresentando basicamente a mesma proposta de entretenimento – para o público e para os participantes –, e, concomitantemente, a "oposição", composta por intelectuais, letrados e hipercríticos, chega igualmente à décima edição, apresentando também os mesmos comentários a respeito do programa.

Como dois e dois são quatro, sei que o teste vale a pena. Suscite uma discussão, seja em uma conversa entre autotintitulados letrados, tipo a mesa de um bar composta por estudantes de ciências humanas quaisquer – de preferência de uma instituição federal, porque estes em sua maioria atendem perfeitamente ao estereótipo de estudante-de-esquerda-crítico-intelectual-antissistema-e-anticultura-de-massa – ou em algum site de jornal brasileiro, por exemplo. É acertado o surgimento de uma profusão de injúrias à Rede Globo, à televisão brasileira, à televisão aberta, à burrice e à falta de cultura do povo brasileiro... esses dois últimos, alvos de críticas que muitas vezes vêm disfarçadas por um eufemismo que confere poderes fascistas sobrenaturais às instituições televisivas e exime de todo e qualquer telespectador brasileiro o direito – arduamente conquistado, diga-se de passagem – da escolha e da autocensura deliberada.

Os motivos são sempre os mesmos: a população deveria ter direito a programas culturais e de conteúdo na televisão aberta; o Big Brother não passa de um programa com descerebrados cujos únicos atributos são peitos e bundas etc etc etc.

O que algumas pessoas esquecem, porém, é que há, sim, programas "culturais" (e, considerando-se "cultura" o conjunto de manifestações que caracterizam um grupo social, pergunto-me se o BBB, como afirmou Pedro Bial, não seria de tanta cultura quanto Guimarães Rosa, sendo este apenas canonizado pelo tempo e pela academia...) e de "conteúdo" na tevê aberta, que discorrem sobre cinema, política, educação. E que a Rede Globo não possui poderes paranormais de coagir o público: vide o fracasso de audiência de Capitu, microssérie com texto de Machado de Assis, com uma bela e incomum estética e com trilha sonora alternativa, exibida no mesmo horário em que o BBB se passa atualmente.

O grande problema não é assistir a programas insapientes, mas sim não possuir capacidade crítica pra discernir aquilo que deve daquilo que não deve ser deglutido. A novela das oito adquiriu o status de folhetim contemporâneo, que detém a atenção e a fidelidade de pessoas que buscam em uma trama elementos para que realizem a clássica catarse. O Big Brother Brasil tornou-se um laboratório humano, no qual pessoas – descerebradas em sua maioria, sim – em convivência extrema criam suas próprias tramas e definem uma linha de identificação com aqueles do outro lado. É ou não é uma catarse da massa?

Além do mais, esta última edição acabou por perder o caráter de entretenimento e tornou-se pauta para uma discussão de cunho social: por que a identificação com um monte de músculos que não domina a própria língua, é misógino, homofóbico e ignorante? A quem se almeja torcendo por ele?

Sim, eu assisto e voto. E, sinceramente, entre o céu e a terra existem mais agentes emburrecedores do que podem supor a nossas vãs filosofias...

sexta-feira, 15 de maio de 2009

La fille plus riche du monde (français macarronique)

Aujourd’hui je n’écrirai qu'en français. Vous me demandez, pour quoi?, et je vous répondes: parce que je le veux. Je ne sais pas, je l'écrire parce que je le veux ou seulement car j’aime dire, regardez, mes gens, regardez comme j’écrire! Mais enfin, je voudrais parlez sur une chose que j’ai vécu la dernière semaine avec mon père et qu'est, je crois, trop especial. Voilà: la dernière semaine j’était en déjeuner avec mon père dans un restaurant en Realengo, un très beaux lieu à Rio de Janeiro, ma ville merveilleuse. Nous bavardions sur beaucoup des choses, depuis litterature et filosophie jusquà la feuilleton de les huit heurs. Un moment, mon père m’a demandé qu’est-ce que je voudrais faire dans ma vie, professionellement; si je voudrais travailler pour toujours dans une maison d'édition, et j'ai lui répondu: oui. Si toujours, ne sais pas, mais maintenat c’est que j’aime faire. Il m’a dit que c’est un rêve très petit , car je pouvais récevoir plus argent dans autre profession, et avoir des maisons et des voitures et faire des voyages etc etc etc...

Bien, je ne sais pas si c’est un petit rêve, en effet. Je connais quelques gens qu'ont beaucoup d’argent et peuvent acheter prèsque toutes les choses qu’ils veulent, mais que ne sont pas joyeux. Et, vous savons, le bonheur n’est pás d’une chose qu'on achete dans les magazines...

Mes rêves sont, basiquement, récevoir d’argent pour avoir ma maison et vivre avec un peu de confort, mais, le plus important à moi c'est avoir vec moi, dand ma côte, mes amis et ma famille, que j’aime et qui n’as pas de prix. Je croix que c’est le plus grand rêve que une personne peut avoir, et je pense aussi que c’est une grande prétention. Un rêve infantile? Peut-être... Exupéry, dans la voix du Petit Prince, a dit que les adultes pensent qu'ils peuvent acheter toutes les choses dans le monde, et, comme des amis on ne acheter pas, ils n'ont pas des amis... Alors, je suis encore un enfant et voudrais tourjours captiver - pas acheter - des amis et des fleurs etc etc etc.

Avoir une bonne famille et grands amis, c'est plus dificile qu'obtenir un bon travail et trop d’argent. Il n’y a pas rien dans ce mond où je peux acheter les gens de confiance que j’ai aujourd’hui et, donc, j’ai dit a mon père: ta fille est la plus riche femme du monde!!

sexta-feira, 27 de março de 2009

Filosofia
(Noel Rosa)

O mundo me condena, e ninguém tem pena
Falando sempre mal do meu nome
Deixando de saber se eu vou morrer de sede
Ou se vou morrer de fome
Mas a filosofia hoje me auxilia
A viver indiferente assim
Nesta prontidão sem fim
Vou fingindo que sou rico
Pra ninguém zombar de mim

Não me incomodo que você me diga
Que a sociedade é minha inimiga
Pois cantando neste mundo
Vivo escravo do meu samba, muito embora vagabundo

Quanto a você da aristocracia
Que tem dinheiro, mas não compra alegria
Há de viver eternamente
Sendo escrava dessa gente
Que cultiva hipocrisia

segunda-feira, 23 de março de 2009

As pessoas e as coisas (papo Ouro de Tolo)

Dia desses estava conversando com o Guga sobre as pessoas mais inteligentes que conhecíamos. O diálogo acabou sendo direcionado a outro foco, já que houve uma pequena indefinição no que dizia respeito ao significado da palavra “inteligência”. Afinal, quais seriam os pré-requisitos para a constituição desta qualidade em uma pessoa? Procurei no dicionário, e a segunda acepção dizia o seguinte: “conjunto de funções psíquicas e psicofisiológicas que contribuem para o conhecimento, para a compreensão da natureza das coisas e do significado dos fatos” (nosso grande amigo poderoso salve-salve Houaiss).

Pensamos em alguns conhecidos que considerávamos inteligentes e nos respectivos atributos que nos faziam de tal forma classificá-los. As respostas foram das mais variadas, passando por desde o conhecimento profundo acerca das artes até a capacidade de se utilizar das experiências de vida para a melhoria das conjunturas ao seu redor. No fim das contas acabamos dividindo as pessoas inteligentes em duas categorias: as pessoas e as coisas.

Quando eu era nova, idealizei o conhecimento intelectual como um meio de ampliar a concepção do mundo e da vida, como um método de despimento de preconceitos e de sentimentos vãos destinados apenas aos ignorantes. Eu queria ser culta pra ser uma pessoa melhor. Pura ingenuidade. Ao longo desta minha extensa e farta vida que me torna uma quase senhora, fatigada e marcada com os traços do tempo, deparei-me com uma porção de criaturas repletas de conhecimentos em artes, história, política, filosofia etc, porém cujo nível de humanização não chegava nem a um por cento do meu vizinho analfabeto. Aí encontrei também no dicionário uma acepção kantiana bem interessante para a palavra “pessoa”. Diz que se trata do “ser humano considerado como um fim em si mesmo, e por esta razão apresentando um valor absoluto, em oposição a coisas e objetos inanimados, nada além do que meios ou instrumentos, e portanto com um valor relativo”. Era isso. O que define uma pessoa de uma coisa é justamente a capacidade de diferenciar-se de um objeto inanimado, capaz apenas de processar e de reproduzir uma profusão de dados.

Às vezes eu encontro uns determinados indivíduos que se perderam nas contas sobre clássicos lidos, idiomas falados, museus visitados, filmes assistidos, poemas decorados e certificados pendurados na parede, que, todavia, não conseguem ter respeito pelo seu próximo, que são incapazes de interagir com o mundo à sua volta, que não têm gosto ou desgosto, que reuniram essa porção de erudição em suas mentes para... para quê? Não sei. Para enriquecer o currículo, talvez. Mas e então? Pois é. Pra mais nada.

Aí a gente pára e pensa como é bom que nem todas as coisas que almejamos na juventude tenham se concretizado... Eu abriria mão de todos os meus conhecimentos, ainda que poucos, para continuar sendo "pessoa". Mas eu nem precisaria, modéstia à parte, pois sou pessoa, e pessoa pracarái.

sábado, 24 de janeiro de 2009

Muito barulho por nada

Sim, eu estou viva!

E após um largo período de abandono, por diversos motivos que contemplam desde a falta de tempo até a falta de saco, cá estamos nós novamente, desejando que o querido blog não se encontre em tal situação outra vez...

Antes que a nova ortografia da língua portuguesa completasse um mês de existência oficial, tomei vergonha na cara e decidi, como boa profissional na área, meter o bedelho no assunto que está tão em voga, afinal, como dizia a célebre MC Tati Quebra-Barraco, eu sou feia mas tô na moda.

Pois é, há muito se vinha discutindo a importância de se unificar essa língua, falada por países de diversos continentes e com significativos abismos culturais. Uma das maiores justificativas era o fato de se tratar da única língua a possuir mais de uma ortografia oficializada, mesmo sendo todos os países ex-colônias de um único, ora pois, Portugal.

Então eis que assim foi feito: Portugal, Brasil, Cabo Verde, Moçambique, Angola e mais alguns outros países cujos nomes não me vêm à cabeça agora passaram a ter um idioma oficial com a tão desejada ortografia unificada. É claro que o assunto gerou controvérsias, e até hoje linguistas (sim, sem trema) divergem ao opinar sobre o caso.

Para justificar, o professor Assis Brasil usou como exemplo, em uma palestra organizada pela FALE no ano passado, a escala musical criada por J. S. Bach. Argumentou que, antes da escala, as notas musicais dispunham-se de forma aleatória, causando inúmeros desentendimentos entre os músicos na composição ou na execução de determinada peça. A escala, criticada no começo, serviu para tornar padronizada uma sequência (sem trema!) de notas que, hoje, parecem inconcebíveis vir em outra ordem que não dó-ré-mi-fá-sol-lá-si. Ok, uma boa metáfora, professor, mas talvez não muito adequada, já que existem dois sistemas linguísticos bastante distintos, conhecidos por aberto e fechado.

O negócio funciona mais ou menos assim: o sistema aberto diz respeito ao vocabulário de uma língua. Todos os dias nós inventamos palavras, criamos novos verbos, atribuímos novos significados a palavras já existentes (aqui no Sul, por exemplo, criaram o verbo "chinelear", que é a ação praticada por pessoas "chinelonas", ou seja, pobres, numa errônea associação do chinelo à classe baixa... a palavra "sinistro" hoje possui uma acepção muito diferente da dicionarizada, e por aí vai...) e esse sistema é totalmente renovável e relativo à cultura na qual está inserido. Exemplo maior é a importação de palavras estrangeiras que muitas vezes aportuguesamos e incorporamos ao nosso vocabulário. O sistema fechado é mais complicado: significa a estrutura de uma língua. Por mais que inventemos, incorporemos ou alteremos palavras, a estrutura da língua permanecerá sempre intacta. Na frase "Eu tomo uma coca-cola e ela pensa em casamento", não seria possível inverter a ordem de determinadas palavras, senão a frase perderia seu sentido. Ninguém nunca poderá "inventar" algo como "pensa coca-cola em tomo ela casamento eu uma e", senão ninguém entende e assim não há comunicação. Só se forem os dadaístas.

Voltando à metáfora do professor, a estrutura de nossa língua, seja aqui, seja além-mar, é a mesma. Existe a padronização, de ordem sintática, que nos possibilita entendimento com qualquer falante dela.

Muitos teóricos a favor do acordo usam a justificativa da "necessidade de entendimento" entre as nações. Ora, sempre se leu Saramago e Pepetela por aqui e eles nunca foram incompreendidos por usarem "facto" em vez de "fato". Ao longo de séculos e mais séculos o Brasil desenvolveu sua própria linguagem, com seus próprios léxicos, e nem por isso houve qualquer falha de comunicação entre colônia e colonizador e, posteriormente, entre um país e outro.
Definitivamente, essa história não cola, pessoal.

Quando as pessoas que eram contra o acordo argumentaram que isso poderia acarretar a falta de identidade linguística dos respectivos países, os teóricos pró-acordo disseram que não, não se afobem não, que cada particularidade será mantida, porque a língua não se delimita apenas em seu léxico, sendo que até o raciocínio de cada nação é diferente. Os portugueses não compreendem ambiguidades, discursos implícitos, e isso será sempre uma peculiaridade daquele povo. Além do mais, abismos ainda existirão: se dissermos, em Lisboa, que Ronaldinho pegou uma bicha, eles não verão problema, por mais católicos ortodoxos que sejam. Se um português pedir um durex em farmácia brasileira, indicar-lhe-ão uma papelaria.

Em suma: haverá um prejuízo editorial inestimável com investimentos em revisões ortográficas, novas impressões; possuidores de bibliotecas terão a impressão de portarem elementos obsoletos e, no fim das contas, todos os propósitos apresentados por aqueles que estão de acordo com o acordo (hohoho, que tiradinha genial), serão um pouquinho deslocados, porém sem ter os objetivos alcançados. Brasil, Portugal, Moçambique, Angola, São Tomé e Príncipe e todos aqueles nossos amigos continuarão falando a língua portuguesa adequada a sua própria cultura, inclusive em documentos oficiais, gerando os mesmos pequenos equívocos que nunca impediram a livre comunicação entre si.

Houve uma movimentação considerável para que, em termos pragmáticos, fosse trocada, como dizia Pessoa, a distinção entre nada e coisa nenhuma.

segunda-feira, 29 de setembro de 2008

Correio de Manhã
29 de setembro de 1908


Morreu Machado de Assis.
Perde a nossa lingua um dos seus mais vigorosos e profundos escriptores.
Com ele desaparece a mais leve e a mais encantadora das nossas prosas, a mais completa e a mais perfeita das organizações literarias que possuimos.
Poeta, romancista, dramaturgo e jornalista, era Machado de Assis o typo culminante e o mais synpathico do nosso mundo de letras.
Sua perda é irreparavel. Num paiz como o nosso, já tão pobre de espiritos brilhantes como o seu, esse desaparecimento é mais importante do que parece.
Finda com o Memorial de Aires o cyclo glorioso da sua obra, livro *e**nte a cujo succeso literario ainda ele pode assistir na vespera da morte.
Não mais nos será dado ler novos primores da penna que escreveu Quincas Borba e D. Casmurro. Machado de Assis desapparece e embora cubram-lhe a tainha de flores e sua memoria da mais profunda saudade, do seu estro so nos restara a lembrança que nos seus livros, no entanto, palpitara sempre luminosa e forte como um sol.
***
Quem entrasse, ás 4 horas, no Garnier havia de ver invariavelmente, um homem pequeno, franzino, de barba curta e quasi branca, sempre numa das cadeiras que correm a fila das brochuras francezas, entre as pernas um indefectível guarda-chuva.
Tinha um ar cansado, se bem que a physionomia lhe sorrisse todas as vezes que um cahpéu se erguesse ou uma mão apertasse a sua, sempre com grande interesse e respeito.
Era Machado de Assis.
Fechada a sua repartição, subia elle Ouvidor acima, caminho do Garnier, áquella mesma hora sempre, com o seu passo rythimico e nervoso de quem vae ao cumprimento de um dever sagrado.
Entrava de chapéu na mão , porque todos se descobriam á sua passagem, e depois de relancear a vista pelas lombadas de livros expostos, procurava a sua cadeira e punha-se a folhear uma brochura qualquer, sempre com um grande ar de abstração e tristeza.
Mas iam chegando, lentamente, os grupos, as mãos que lhe estendiam, as phrases que indagavam pela sua saúde, e elle, sempre muito risonho, muito timido, no meio daqueles homens que o cercavam era como uma criança mimada, querida, bajulada.
Um verdadeiro enternecimento.
E velhos e novos, academicos e poetas que surgissem, oculos e cabelleiras, cercavam-no com interesse, com curiosidade ou admiração.
De toda a grande nave da livraria, era a figura mais querida, a mais vista e a mais admirada.
Dizia-se – o mestre, olhava-se a sua cabeça branca quando elle se descobria, com veneração, como que a dizer baixinho – aquelle foi o que escreveu o Braz Cubas.
Estranha e original organização que não pode ter o relevo merecido nestas linhas escriptas ao correr da penna.
Era um modesto e um curioso. Duas relações superiores do seu espírito.
Detestava a reclame, a effusão encomiastica da phrase dos outros sobre as suas obras; sorria quase dolorosamente quando lhe diziam que era o maior dos nossos homens de letras. Uma modestia verdadeiramente morbida.
Não dizia jamais os seus projetos literarios, sempre dentro da maior reserva, mesmo para com os seus intimos. Entregava os originaes dos seus livros ás escondidas, pedia que nada se dissesse aos jornaes e da sua obra só se vinha a saber, que aparecia na montra das livrarias, e se azamafavam os caixeiros em vender edições que se esgotavam rapidamente.
De uma generosidade absoluta, odiava a polemica, aceitava a todos, a todos sorria, confundindo no mesmo olhar de sympathia o seu maior amigo e o seu maior inimigo.
Da sua boca raro saía uma palavra má, ou de censura para um homem ou para uma coisa. Verdade que as suas affirmações eram raras e grande, enorme, a sua reserva.
Sente-se isso em toda a sua obra.
Difficilmente affirmava.
Dir-se-ia guardar sempre um julgamento posterior para o julgamento por elle proprio firmado.
Perguntassem-lhe, por exemplo, sobre a superioridade do poeta A sobre o poeta B, elle dizia:
- A é muito bom, porém muito bom também é B.. Ambos são muito bons, dahi, talvez, ambos não valham nada…
Dizem que sempre foi assim, Machado de Assis.
A ultima vez que o vimos e que indagamos pela sua saúde já ferida de morte:
- Mestre, então, vae melhor?
Ele respondeu:
- Não sei. Já me senti muito mal, porém parece que não estou melhor. Dizem os médicos que isso é sem cuidado. Não sei si deva crer nos medicos.
Ainda o mesmo, cai*inha da morte, com quasi setenta anos, com o seu eterno temor de nada affirmar, como que si tudo nesta terra não merecesse nem uma certeza nem uma affirmação.

quarta-feira, 13 de agosto de 2008

A impragmatizabilidade* da Literatura

Semana passada eu encontrei uma amiga que acabou de se formar no curso de Letras. Como não nos víamos desde a época em que ela ainda estava produzindo seu trabalho de conclusão (sobre uma obra literária), perguntei-lhe como havia sido a defesa da monografia. Sua nota foi 9, e a justificativa para a perda de um ponto foi a ilação à qual a banca examinadora chegou: o assunto trabalhado não possuía relevância científica.

Bom, eu já li trabalhos acadêmicos que estudavam a importância da substância X para a complementação do valor nutricional na alimentação de pessoas anêmicas de baixa renda, já li sobre a relevância da técnica terapêutica Y no tratamento de pessoas com tendências suicidas e até já ouvi falar de uma certa área da lingüística que estuda o desenvolvimento cognitivo.
Mas determinar a relevância científica do estudo de uma obra de arte é realmente complicado.

Primeiro é necessário discernir o que se entende por relevância científica nesse caso. São estudos cujos resultados oferecerão mudanças benéficas à sociedade? Parece-me que a relevância científica no estudo de uma obra literária diz respeito à importância que as questões suscitadas no trabalho terão para a elaboração de pesquisas posteriores. E os objetivos das pesquisas posteriores devem contemplar o quê? A Literatura não tem como objetivo outra coisa além de si mesma, senão se torna didatismo, panfleto, cartilha. Senão não é Literatura. Sim, ela modifica o percurso de uma sociedade (e/ou descreve essa modificação), e é possível – e, mais do que isso, necessário – verificar que tal manifestação é muito responsável pelo exercício da reflexão e do pensamento crítico, do desenvolvimento da autonomia intelectual e da humanização do leitor (papinho mais LDB), mas as vias pelas quais esse “progresso intelectual” ocorre não se descrevem em métodos científicos e tampouco podem ser comprovadas com elementos concretos.

A arte, desde os primórdios da civilização, é o símbolo de status de uma classe privilegiada, sendo sempre dissociada do “trabalho”. Trabalhar faz parte do sofrimento cotidiano, implica esforço, cobranças, resultados. Já a arte é objeto de prazer, de fruição, e a relevância presente em uma obra de arte para mudanças à sociedade ocorre de modo indireto, a partir do momento em que sua qualidade artística oferece “acesso a um conhecimento que objetivamente não se pode mensurar” (papinho mais PCN). O texto literário é essencialmente subjetivo, e não se pode comprovar, por A+B, o que a obra Z provocará na sociedade W. Até porque não existem A nem B que possam ser tão seguramente enumerados em uma manifestação cuja característica principal é a multinterpretação (e eis mais uma composição morfológica neologista). Assim, a relevância científica de um estudo que preza por um resultado preciso e que se utiliza de elementos exatos para a mudança direta de uma determinada realidade não pode ser a mesma relevância científica do estudo de uma obra de arte. A literatura não é passível do utilitarismo e o usufruto que ela nos oferece transcende às barreiras de metodologia, objetivos e cronogramas.

Um ponto para a minha amiga!

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* O Dicionário Houaiss de Língua Portuguesa não reconhece a palavra, mas foram utilizados os conhecimentos adquiridos através de aulas de Morfologia para justificar aquilo que pode ser chamado de raciocínio lingüístico e, mesmo com toda a formação acadêmica obtida para se chegar a tamanha construção morfológica, tal raciocínio é aplicado com mais freqüência e com a mesma perspicácia por bebês em processo de aquisição lingüística e por pessoas não-escolarizadas sem nenhum conhecimento teórico acerca do tema. Enfim. Temos como raiz o verbo “pragmatizar”, que significa "tornar pragmático", mais o prefixo “im-”, que significa negação, e o sufixo “-bilidade”, cuja função é dar o caráter de “passível de” à palavra. Assim, a palavra “impragmatizabilidade” pode possuir, como acepção, “aquilo que não é passível de se tornar pragmático”.

sábado, 29 de março de 2008

Quem ama Literatura não estuda Literatura nem o Impressionismo Crítico

Antes de ir ao que interessa, eu preciso dizer o quão difícil é dar conta de todos esses afazeres os quais eu ultimamente tenho sido incumbida de realizar. Ser professora de ensino fundamental, estagiária em departamento de produção editorial, irmã participativa, namorada(-) presente, estudante de um sétimo semestre entediante, consultora da Natura, blogueira, guitarrista de uma banda neotropicalista imaginária e pensadora constante da morte-da-bezerra é uma adoção de atividades que me rendem, no mínimo, umas boas olheiras e resmungões que se tornam presentes em todo e qualquer e-mail, torpedo SMS, carta, telefonema, conversa de elevador ou post em blog que se possam imaginar.

Mas antes que tais lamúrias tornem-se por completo o assunto principal hoje (pois, já diziam os célebres Lanlan e Os Elaines, eu não agüento mais, é tanta chorumela...), manterei a mesma linha queixumeira, porém em outro âmbito.

Certa vez eu ouvi falar em um livro chamado Quem ama Literatura não estuda Literatura. O título me causou demasiado interesse e descobri que, na verdade, a crítica não se dirige exatamente aos estudos literários em si, mas à elitização na qual estão inseridos esses estudos. O autor, Joel Rufino, professor universitário e cascadurense de coração (alô alô Cascadura!), faz um apanhado histórico dos movimentos artísticos no Brasil do século passado, comparando os registros perdurantes – estudados e canonizados em meios acadêmicos – com as repercussões da época. Descobriu-se, então, que muitos outros fatos foram de maior impacto à sociedade na época e hoje não são sequer comentados.

Eu particularmente prefiro fazer uso do título do livro levando-o ao pé da letra, apenas. Porque estudar literatura, principalmente para quem a ama, é, realmente, muito chato...

Umberto Eco traçou dois perfis para pessoas leitoras. O primeiro grupo é de leitores-vítima: pessoas que lêem e, por motivos subjetivos, gostam – ou não, de uma determinada obra; o segundo grupo é o de leitores críticos: viventes que, ao lerem, fazem críticas mais embasadas, de cunho mais científico. Ao longo desta minha extensa vida que me torna quase uma anciã, percebi como muitas vezes o estudo de um objeto de arte sob a perspectiva teórica estraga toda a sua magia e faz com que a apreciação, que poderia proporcionar grande fruição e gozo (ui) de cunho estético, acabe por tornar-se uma análise fria e insensível. Então decidi por me enquadrar no grupo dos leitores-vítima, ou o que Carlos Reis também denominou como leitores-comuns. Encaro a obra literária fundamentalmente como objeto lúdico; relaciono-a com leituras antecedidas, enriqueço-me, e faço com que a obra por si me deixe muito feliz – ou não.

Estava já bastante contente com as constatações e a firmação de uma identidade que, antes, muito me afligia e, pra ficar ainda mais contente, descobri que existe, já há algum tempo, uma posição que defende a não-teorização da Literatura, mas apenas a sua fruição, “subjetiva e desinteressada de métodos e conceitos”. Uhuu! O nome dessa corrente antiteórica é impressionismo crítico. Uhuu!

Saí saltitando pelos corredores da PUC. Sou uma impressionista crítica, não gosto de teoria e o mundo me aceita...... quando, a atitude antiteórica dos impressionistas críticos, depois de mais de um século sendo estudada, desenvolvida e teorizada, tornou-se (adivinhem) uma construção teórica da porra toda.

domingo, 23 de março de 2008

Eu realmente queria, do fundo do meu coração, escrever a respeito de algum livro, da situação socioeconômica no Brasil, da epidemia de dengue, da gravidez da Paris Hilton, do aumento da arrecadação de impostos ou do acordo ortográfico entre os países lusófonos. Mas o fato é que, ao escrever o primeiro texto de um blog, o egocentrismo é tamanho que se faz praticamente necessário escrever a respeito dele mesmo: o blog.

Então, a partir de agora, é aqui onde me hospedarei. Como já disse o meu irmão, companheiro de epifanias gastronômicas afro-descendentes e de piadas sem sentido literário, eu também espero que isto aqui não se torne um site fantasma e que eu consiga desenvolver, assim como já foi outrora, textos sobre as mais diversas infâmias. E que, claro, não haja sempre essa metalinguagem chatíssima de se utilizar de si mesmo para falar de si mesmo, quando na verdade não existe nada sobre o que falar. Porque a gente começa escrevendo sobre a falta do que escrever e, dentro de pouco tempo, já começa a postar letras de música, gifs de bonequinhas mandando beijinhos de corações, e aí já era...

E eis que eu termino o primeiro texto sem falar sobre o que realmente me propunha. Mas o blog está aí. Quem me conhece sabe de onde vem o título; tem vários links, uma homenagem ao Profeta Gentileza, quadro da Tarsila do Amaral; (quase) tudo bastante brasileiro, que é o que eu de fato sou. Tirando o quase. Enfim, mexam bastante, futuquem em tudo, fiquem à vontade...

(Ah, agradecimentos muito especiais à Anna Kovsky, que lidou com todos esses processos burocráticos e informáticos para a criação da logo e do layout.)